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Apesar do isolamento forçado (ainda não sei bem como vamos falar sobre esses tempos às crianças no futuro sem parecermos velhinhos mentirosos…), abri algumas garrafas – umas cotidianas, outras especiais – mas neste post não focarei em um rótulo. Vou quebrar a “regra de ouro” do blog e, mesmo sem falar de um vinho, tentarei organizar uma série de pensamentos que tem ido e vindo à minha cabeça, até mesmo durante a meditação matinal.

A ideia do post deste mês é deixar registrados num textão alguns fatos e algumas leituras e impressões minhas sobre de que modo o mundo – não só do vinho – está sendo afetado pelo Coronavírus.

Mesmo antes da Pandemia, já havia informações do impacto da mudança climática (ou da urgência climática, como dizem alguns especialistas) sobre a viticultura (produção da uva) e a vinicultura (produção do vinho).

Escrevi brevemente em outro post sobre o aquecimento no sul da Inglaterra, que vai permitindo uvas melhores e mais adequadas à produção de espumantes capazes de competir com o Champagne em alguns anos.

Também vimos na imprensa informações sobre a chuva que caiu – e a que não caiu – durante a maturação final para a colheita de 2020 no Brasil, que promete gerar ótima matéria prima para nossos já premiados espumantes. Lugares frios estão se aquecendo, lugares quentes estão ficando ainda mais quentes, lugares mais úmidos secam, há geada tardia na primavera e por ai vamos – neste momento, escrevo de uma cidade onde houve chuva apenas em 4 dias de 2 meses. Sem falar que há 10 dias houve geada tardia na França, na primavera. Se isso não é urgência climática, não sei o que é….

Ainda que o isolamento e a quarentena tenham gerado alivio na poluição atmosférica em vários países (viu-se o céu na China e águas-vivas nos canais de Veneza), as medidas tomadas pelos governos mundo afora geraram forte impacto econômico e a situação ficou ainda mais grave. Agora não se trata “apenas” de ter afetada a produção de uvas pelo clima (como se fosse possível fazer vinho bom de uva ruim…), mas de ver consequências na produção e na comercialização de vinho.

Do lado do consumo o cenário é devastador. Confinamento de bilhões de pessoas no mundo em abril (não há consenso sobre o número, então não o mencionarei), e confinadas ou não, há também bilhões sem renda alguma ou sem renda definida.

A primeira alternativa para continuar a vender aos isolados que ainda tem renda foi usar o E-Commerce. No mercado de vinhos, em janeiro de 2020 já se havia reportado um crescimento nas vendas pela internet durante 2019. Porém, para os consumidores não iniciados, a compra de vinhos pela internet pode requerer mais conhecimento sobre o produto e mais tempo buscando avaliações, comentários, indicações, o que não acontece quando vamos à uma loja física e podemos conversar com nosso atendente/vendedor/sommelier favorito. Claro que o contato físico é mais importante nas culturas latinas que em outras, mas os aplicativos de avaliação (e agora também compra) como o Vivino ou o Evino sempre podem ser usados para consulta. Sem esquecer de mencionar que para algumas pessoas o isolamento social está “criando tempo” e ficar surfando na internet à busca de informações sobre um Grand Cru ou sobre um Tannat varietal não é tão desagradável assim.

Ainda sobre o e-commerce: portais especializados falavam de aumento de 50% das vendas na Itália, durante março. Vinícolas italianas foram criativas e passaram a fazer degustações “online”: vendiam pela internet o pacote completo, com o vinho e outros alimentos, a entrega e uma reunião virtual para comentar a degustação. Ou seja, a experiência da degustação e da compra que se fazia nas vinícolas presencialmente foi reinventada durante o lockdown (ou confinamento, para os íntimos).

De modo geral, os canais de e-commerce (pela facilidade/segurança de comprar, pagar e receber, na maioria dos casos) e os supermercados (por terem o vinho combinado aos itens de alimentação e higiene, tão necessários durante o isolamento) conseguem manter a receita. Porém as lojas pequenas, os restaurantes, os bares e os bares de vinho estão sofrendo mais; e sem crédito bancário podem não retornar às atividades quando o “novo normal” chegar. Talvez eu devesse entrar em detalhes (mas neste post não vou) sobre como nossos bancos privados mantém as “boas práticas” de análise de garantias para concessão de crédito neste momento – quem me dera o empoçamento fosse apenas de vinho….

A queda brutal no inicio não pode ser compensada pelos pequenos porque nem todos possuíam canal de e-commerce estruturado. E aqui podemos ver algumas possíveis mudanças que são aceleradas pela pandemia: 1) e-commerce sendo usado também por pequenas lojas de vinho e não apenas grandes players; 2)  uma possível predileção dos consumidores por comprar do pequeno comércio local próximo, seja por empatia, seja por simpatia, seja por visão crítica de manutenção de empregos no entorno. Parênteses: lembro-me agora de uma crônica do Drummond sobre o fechamento de uma loja de gravatas por onde sempre passava caminhando; ele lamenta o fechamento e sente remorso, porque nunca comprara uma gravata sequer naquela loja. 3) risco de perda de mercado dos produtores vinho que seguem os métodos de produção alternativos (biodinâmicos, orgânicos e mais sustentáveis), dado que seus produtos tem preço mais elevado e a necessidade de cortar custos pelo consumidor durante o isolamento pode forçar o consumo mais básico e finalmente 4) oportunidade de uma grande mudança cultural para forçar iniciativas ambientalmente mais positivas, após tanto tempo para refletir sobre o impacto que causamos no planeta….(ainda que incongruente com a oportunidade número 3….)

Sem falar no jeitinho brasileiro: anuncia o produto no Facebook e efetiva a venda pelo whatsapp. Informal, mas funciona para gerar alguma renda e manter alguns empregos.

Mais pimenta no tempero: os países relevantes no mercado já viviam situações diferentes devido à mudança no clima e por sua situação macroeconômica. Com a pandemia, foram adotados critérios diferentes para permitir ou não o funcionamento dos canais de venda de vinho.

A Argentina já estava em grave recessão econômica, com queda no consumo interno e sem aumento suficiente nas exportações para compensar em toda a cadeia. A crise sanitária chegou justamente no momento da colheita, elevando custos. A venda de vinho foi completamente proibida nas pequenas lojas, restaurantes também foram fechados e o preço praticado pelos supermercados está congelado nos níveis de 2019.  O canal de comércio eletrônico é incipiente entre as vinícolas (acreditam?!) e o custo de transporte é alto para que vendam diretamente ao consumidor. Tempestade perfeita.

Reflito com meus botões como foi importante o Brasil ter avançado e-comm e disseminado inclusive para as vinícolas. Recebo ofertas e acompanho as promoções dos grandes produtos e até os locais próximos a mim já usam esse canal (e funciona!).

Os países mediterrâneos dependem muito da venda no balcão de bares, nas lojas das vinícolas e nos restaurantes, ou seja, do turismo, que desapareceu e vai demorar a voltar no “novo normal”. Preciso mencionar que Espanha, França e Itália produzem 50% do vinho no mundo.

Estados Unidos, França, Itália e China (afetados gravemente) mais Alemanha (afetada com um pouco menos de gravidade) são responsáveis por 50% do consumo global. E a Inglaterra, tão aberta oferta de rótulos e tão prejudicada pela Pandemia, consome 5%.

E como vamos sair dessa situação?

Teremos uma festa global, como aquelas que vemos em documentários e filmes sobre o fim da 2ª Guerra Mundial, com pessoas nas ruas, aos beijos e abraços? Provavelmente não. Tudo indica que a abertura será gradual, cada pais com um caminho, talvez seguindo alguma coordenação mínima, como sinaliza a União Europeia. Ao que tudo indica teremos o que estou chamando de “quarentena intermitente”, cenário no qual haverá abertura e afrouxamento da quarentena quando houver redução de casos e alívio do sistema público, seguida por novo fechamento quando os índices recrudescerem. Isso até a vacina chegar ou até todo o “rebanho” estar imune.

Há quem diga que vamos valorizar mais a produção natural, mais ecológica, mais sustentável. Porém isso terá de vir acompanhado de preços acessíveis, porque a renda de todos os consumidores deve vai cair.

Há quem diga que exatamente por isso vamos gastar menos; teremos então uma chance para democratizar vinhos hoje inacessíveis, mas essa redução de preço pode também forçar um achatamento da já enfraquecida receita dos produtores próximos a cada um. De modo geral, há sinais de que os produtos Premium (excelentes avaliações e alto preço de venda) podem ceder espaço aos de melhor custo x benefício (leia-se boas avaliações e preço mediano).

Há quem diga que, mesmo após a possível intermitência, vamos viajar menos e por isso vamos aprender e valorizar mais a produção local. Para o Brasil seria bastante positivo, porque apesar da nossa vocação ser o vinho espumante (para alguns especialistas com os quais eu concordo), há coisas boas acontecendo nas serras da Mantiqueira e na Catarinense, por exemplo. Ou talvez eu consiga comprar mais vinhos do Vale do São Francisco (que hoje para mim custam o mesmo ou até um pouco mais que um vinho de Portugal ou de países do Mercosul).

O vinho serve de consolo, em parte. Porém é preciso ter cuidado: vinho é sinônimo de partilha e por isso socialmente mais aceito que a cerveja ou a cachaça, mas pode ser igualmente viciante e causar sérios danos físicos e psicológicos se ingerido em quantidades fora do recomendado. Lembre-se daquela tacinha que os médicos dizem que é remédio…só aquela, a cada dia.